quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Conto Sujo - A arma

Mais um trago daquela cachaça ardida, de péssima qualidade, que pra ele já não fazia diferença. Nunca conhecera coisa melhor, em uma vida pobre e dura. Mais um trago. Dentro daquele quarto escuro e úmido, com um prego solitário que já havia acolhido algum quadro igualmente sujo e de mau gosto. Hoje era só um prego pendurado ao léu, sem importância nenhuma pra ninguém.


Aquele homem – ou fora um – nunca havia sido feliz. Com oito irmãos pra sua mãe solteira criar, ele (o terceiro dentre eles) era apenas outro filho em uma fila para comer. Nada de amor, o que importava era ter o que comer no dia seguinte. Não havia tempo para outro tipo de sentimento. “Só quem passa fome pra entendê essa merda”, pensava ele.

Reparou no quarto que ele alugava de uma velha grossa e sovina – lembrava sua mãe – e não conseguia deixar de se sentir parte daquilo. Sujo, velho, inútil. Mais um trago. Há tempos que a cachaça não fazia diferença. Sua tentativa de esconder toda uma vida extremamente amarga e cruel já não era possível só com álcool. “Priciso acabá com essa porra”. Sabia que comprara aquele .38 de um conterrâneo cearense não pra sua segurança, afinal ninguém ia roubar um homem como ele. Já olhava para a arma – também suja e velha, como seu quarto de hotel e sua vida – da forma com que olhava para a cachaça. Seria a solução de seus problemas. Definitiva, rápida e eficiente.

Uma bala, um giro no tambor e um toque do destino. Será? Sua dúvida consumia o pensamento. Não por medo de morrer, já que não valia a pena viver desde que se entendia por gente. Sua preocupação era justamente a roleta-russa roubar-lhe a vez, assim como a vida fez com ele. Teria coragem de acertar a bala e meter o cano daquele ferro frio na boca? Nunca fora decidido, não sabia se seria agora, justamente pra dar cabo de uma vida insegura, infeliz e derrotada.

“Foda-se”. Pegou .38 enferrujado com uma mão, agarrou o aguardente com a outra e sentou-se na cama de costas para o prego. Era seu retrato no quarto. Lembrou de sua mãe, magra, esfomeada e com dois de seus sete irmãos no colo. Ela acenava pra ele, convidando-o a juntar-se a ela. Os olhos marejados não mais conseguiam focar aquela parede descascada. Já estava morto e não sabia. O caminho da arma entre a cama e a boca foi percorrido com naturalidade. Ela estava leve. Esqueceu que a bala não estava na posição correta, e poderia não haver o tiro de misericórdia.

Tarde demais. Já estava a caminho de encontrar sua mãe.

Por Cleo Linhares

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